quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Palavras descompromentidas



“Ria-se, alma, ria-se de mim/ Rirei então e enfim, quando vir o teu riso no ralo.”

Essas palavras, talvez em outra ordem e com outro sentido, foram escritas pelos idos da década passada, provavelmente no ano de 2002 ou 2003, não sei bem. Trata-se de palavras que escrevi para Cristina. Pode a alma rir-se, pode este verbo ser pronominal? Pode este ser dedicar-se tantos minutos a uma escrita tão descompromentida? Pode! Pode sim. Se este ser um dia escrever palavras que mereçam carmim, pelo menos terá praticado a escrita digitada, o que lhe dará certa destreza para utilizar este aparato.

Falando em aparato, uma palavra que com ela rima é artefato. Artefato, a palavra, meu artefato. Não tenho outro, tentei algumas vezes fazer uns rabiscos que por alguns segundos chamei de desenhos, mas descobri, embora as pessoas, amigos artistas plásticos com quem travo longas conversas não admitam, que a obra com a palavra pode assemelhar-se com a obra praticada com as formas e as cores e os conteúdos.

Não saberia mesmo dizer, sem antes fazer uma reflexão com apontamentos, explicar o que efetivamente quero dizer com isso, o que é palavra, o que é sentido. Não posso (a não ser, claro, em uma escrita descompromentida), preciso pensar em que medida a palavra apresenta a imagem, como a palavra – qual conceito mesmo a linguística lhe deu? – se desdobra na hora que é pronunciada. Com efeito, precisaria entender se uma palavra não tem qualquer desdobramento num livro que nunca é aberto. Poderia dizer que uma palavra não é palavra simplesmente porque se encontra num livro que nunca é aberto?

Vamos imaginar que Carlos Drummond de Andrade há escrito por aí um poema que nunca foi encontrado entre os seus papéis, digamos que esse poema siga até hoje na gaveta de uma estante da casa de alguma tia que ele frequentou quando era criança e que jamais, depois que ele depositou esse poema aí, qualquer pessoa voltou a tocar nesse papel, inclusive ele. Imagino então que, nesse poema imaginado, Carlos Drummond de Andrade criou uma palavra da qual nunca mais se recordou. Melhor. Imaginemos que essa foi o primeiro neologismo que o poeta criou. Tem forma essa palavra? Tem conteúdo essa palavra? Tem matéria? Ora, essa palavra não existia até há poucos minutos, quando resolvi colocar minhas mãos neste computador a fim de escrever palavras completamente descompromentidas. Mas agora existe, porque eu lhe dei vida (vida?).

Há sem dúvida, podem procurar os seus biógrafos e pesquisadores, na gaveta de uma estante de alguma tia sua cuja casa o poeta frequentou na infância, ou na adolescência, um poema no qual ele fez o primeiro neologismo. Podem procurar. Era uma tarde, ele havia saído para caminhar um pouco antes de jantar com a tia e os primos, viu pessoas sofrentes que passavam desatinadamente por uma praça onde ele se sentou para tomar um ar, viu seres viventes que voavam como os pombos cagantes ‑ em toda boa praça, seja ela monumental, como as que tenho visitado aqui em Santiago, seja minúscula como a que frequento em Santa Maria, há sempre pombos cagantes que comem o que as pessoas sofrentes deixam cair, porque as pessoas sofrentes sempre comem algo nas praças.

Mas voltando ao poeta, estava esperando até que o sol se pusesse atrás de uma casinha antiga, estilo colonial, em algum bairro que hoje tem outro nome no estado de Minas Gerais, quando essa lhe veio à cabeça, relacionava o pombo com a gente toda que frequentava aquela praça tão apreciada (na verdade o motivo de suas visitas à casa da tia era poder frequentar a praça no fim da tarde, poder ver a gente a caminhar e os pombos a cagar).

Então, existe essa palavra que o poeta criou ou não? Está lá, na segunda gaveta da esquerda para a direita num conjunto de quatro gavetas que há nessa antiga estante de cerejeira na casa de uma tia há muitíssimo morta do poeta? Bem, algum desavisado pode dizer mas o poeta não frequentava a casa de nenhuma tia. Eu contesto com segurança: como não, se ela tem uma estante de cerejeira com quatro gavetas em uma das quais o poeta colocou um poema com o seu primeiro neologismo relacionando a gente aos pombos que moram na praça? Como não, se podem confirmar abrindo a segunda gaveta da esquerda para a direita e encontrar, em um papel amarelento e com caligrafia de um jovem de uns quinze anos uma palavra que o poeta inventou? Como não?

Essa palavra apenas não existiria se o poeta, nessa tarde quente ‑ era verão seguramente, os sobrinhos sempre visitam as suas tias no verão ‑, não a houvesse visitado e tivesse escrito um poema depois de chegar da praça onde esteve algumas horas a observar as pessoas sofrentes, os pombos cagantes. Como não, se foi no caminho dessa praça para a casa da tia que o poeta encontrou uma famosa pedra?

4 comentários:

Cris e Thy disse...

aPARENTÊSimal
Adorei e odiei a menção a minha pessoa e a esse velho e lindo poema. (Onde está ele? na gaveta? ou no baú de sonhos do qual perdestes a chave? do qual eu fiz vc forçosamente perder a chave, do qual eu profeticamente fiz o favor de engolir a chave?) Odiei por que vc chama o seu velho poema de descompromentido... eu me senti (junto com teu poema de década passada) na gaveta da tia velha alí a muito esquecida a pouco inventada....
Mas do que estou reclamando Borges pq seriammais comprometidas e mais reais as tuas palavras de antes que a tua ilusao literária de agora? Pq eram para mim?
Sim! pq eram para mim ou ao meu respeito de alguma forma! ( se o eram?)
Elas têm todo o direito de serem mais se não reais pelo menos mais.... Afinal quantas noites vc demorou para dormir ou sofreu pelo jovem Drummond de 15 anos? Nenhuma q eu me lembre... Já minha alma sabe a dor de escorrer pelo ralo...

p/s Vaidades a parte Kandinsk fala sobre uma coisa de "teoria total da arte" na qual um poema corresponde a uma música e a um quadro... Enfim meios diferentes podem causar algo de correspondente. Já ouviu a música assimfalou zaraturtra q foi feita para corresponder ao livro?

BJS CRIS

Cris e Thy disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Cris e Thy disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Karel Odhara disse...

olha que graça, descobri há uns dias que há nesta casa que habito uma chave que ninguém conhece, nem você. acontece que já não sei onde está, porventura será como alguma moeda de borges...